CABEÇA DE NEGRO

MARACATUS DE FORTALEZA NO SÉCULO XIX

O MARACATU - Gustavo Barroso

In Idéias e Palavras, Livraria Editora Leite Ribeiro & Maurilo, RJ, 1917.

A nota mais original do carnaval carioca é o cordão, com a sua seriedade lúgubre-grotesca, o caráter hierático-fetichista, próprio da raça negra, da sua coreografia e da sua melopéia. Essa religiosidade primitiva das danças, dos cantos e das atitudes do cordão mostra-se à primeira vista, como abertamente mostravam sua obediência aos cânones, os baixos relevos egípcios, feitos quando o dogmatismo sacerdotal obrigava a arte a produzir as figuras humanas com o busto de frente e os pés de perfil.

No Nordeste brasileiro não existe o cordão com seus índios empenachados e estandartes berrantes, mas existe o maracatu, que tem o mesmo caráter sinistro, o mesmo canto monótono, a mesma dança cadenciada, o mesmo tom de procissão, de enterro, de não sei qual cerimônia achanti, sudanesa ou hotentote, transplantada para o Brasil e executada nas ruas de suas capitais.

O maracatu, porém, não tem índios. Todos os seus figurantes vestem de negras, de saia e cabeção, à maneira baiana, mas com altos cocares de penas de ema à cabeça. Guarda melhor as tradições africanas. Geralmente, é maior que o cordão. Consta de uns trinta indivíduos, que formam em duas filas, conduzidos por um tocador de ganzá ou maracá de folha de Flandres.

Ao chiado do instrumento bárbaro, o maracatu atravessa as ruas, impenetrável e triste, dançando arrastadamente, cantando em voz cavernosa versos curtos sem significação uns, outros cuja significação se perdeu com o tempo, quase todos eivados de expressões africanas adulteradas pela senzala, misturadas a palavras portuguesas. A dança, acompanhada pelo chiar arrepiante do ganzá e pela melopéia sepulcral dos cantos, lembra a dança macabra de esqueletos e defuntos em derredor dos cavaleiros bordados de aço das velhas gravuras da Alemanha medieval. Recorda a fúnebre cerimônia de enterro de um chefe daometano, quando as tribos já se aprestam para a matança ritual. As vozes trazem à memória o dolente cantar dos guerreiros kakuanos, de que nos fala Ridder Hagaard. O negro, que dirigia a canção, interrogava plangentemente :
Qual a sorte sobre a terra de quem teve de nascer?
O coro selvagem soluçava, ferindo o solo com as pontas das lanças :
Morrer! Morrer!
O guia do maracatu, saltando meio acurvado e agitando o maracá, pergunta :
Fausta, Fausta, cadê Mariana?
O coro, lúgubre, responde :
Mariana! Mariana!
Torna o tocador, em voz soturna :
Que negra safada só é Mariana!
As duas filas replicam :
Amarra a saia com jitirana!
Pára diante das casas, recebe uns níqueis, organiza uma roda e dança no mesmo compasso musical, plangente, langoroso, hierático, africano :
Teia, teia, teia de engomar
Vira de banda, torna a revirar
Teia, teia, teia do mar
Nossa rainha para coroar
Ninguém sabe o que significam tais versos nem mesmo os próprios dançarinos; somente neles se verifica uma reminiscência dos trabalhos domésticos dos escravos naquela "teia de engomar, que vira de banda e torna a virar", acompanhado pelos gestos característicos da tarefa das engomadeiras. As raças inferiores, que formam o substrato da nossa arraia miúda vão se diluindo na formação da nacionalidade sem deixar um traço de sua passagem. Sem palavra escrita e sem meios que só a liberdade dá, encerrados numa sociedade que os digere pouco e pouco, estranhos quase a ela, mas nela se integrando, não legarão aos vindouros um documento de sua vida mesquinha, nem um dólmen, nem uma pedra sepulcral, nem uma página. Para que delas se perpetue alguma é necessário que os coevos registem uma a uma as suas manifestações de toda a espécie.

E como a observação de suas práticas singelas e tristes, dos seus costumes primitivos e tradicionais, nos atiram através dos séculos até a rude e humilde humanidade dos primeiros tempos, adorando a fatalidade, amando a terra, as plantas e os animais, polindo o sílex, esboçando os rudimentos dos velhos cultos e das velhas civilizações. O maracatu é mais apavorador do que grotesco. Ao avistá-lo, os meninos correm, gritando com medo, escondendo-se nas casas, tal o aspecto lúgubre dos robustos figurantes trajados de negras, com os seus enormes ouropéis e a sua dança fúnebre. A Bahia tem dois similares do maracatu e do cordão. São os ranchos e os candomblés, nos quais predomina a mesma nota fetichista, tristonha e misteriosa.

No Rio, os cordões têm nomes interessantes e que mais ou menos indicam o bairro de sua procedência: Destemidos da Gamboa, Escovados da América, Flor de Oiro de Cascadura. Nas cidades do Nordeste, segue-se a mesma prática. O maracatu traz o nome do arrabalde onde se originou ou do indivíduo que mais contribuiu para sua formação: Maracatu do Outeiro, da Apertada Hora, da rua de São Cosme, do Morro do Moinho, do Manoel Conrado. Na vida brasileira, vão morrendo vagarosamente todas as tradições da escravidão. Foi-se o Rei do Congo e desapareceram Reisados e Candomblés. O cordão e o maracatu serão, talvez, as últimas que desaparecerão porque o entusiasmo carnavalesco do poviléu ainda lhe dará vida nos últimos estertores da raça que o produziu e que a comunidade dia a dia absorve.

CARNAVAL - João Nogueira

In Fortaleza Velha, Imprensa Universitária da UFC, CE, 1981.

... Pelos anos de 1830 aqui na Fortaleza não se brincava o carnaval propriamente dito: apenas o entrudo (de introitum, entrada, da Quaresma). Brinquedo grosseiro a que pouca gente se entregava, mas, apesar disto, o jogo era forte. É tradição que Ferreira Boticário, por ser doido pelo entrudo, mandava colocar uma grande tina d’água à sua porta e molhava a quem passasse. Com isto ria a bom rir. Se algum dos agredidos se revoltava contra isto, era agarrado e trazido para junto da tina, a fim de receber o batismo.(...) Infeliz da negra que aqueles luperci encontrassem na rua: em um ápice ficava branca de neve, tanta farinha de trigo lhe jogavam. Sujavam-lhe o vestido. A pobre que fosse, enfurecida, lavar a sua roupa e limpar a carapinha de um amaldiçoado empoamento. Invadiam as casas das famílias, onde não respeitavam nem a quem estivesse doente na camarinha.

A estes, porque os não podiam molhar, pintavam as faces com zarcão e sujavam roupas e redes com os pós negros... Já em 1870 o jogo do entrudo era menos grosseiro: em vez de bacias d’água e de batismo usavam-se as laranjinhas de borracha ou de cera, com água de cheiro.(...) Outro grupo que aparecia uma vez ou outra era o dos Maracatus. Formados só de homens, vestidos de mulher, saias brancas e cabeções de renda, traziam o corpo e o rosto pintados de negro. À simples vista pareciam africanos. Não dançavam. Andavam lentamente, pelas ruas. Assim vimos passar, algumas vezes, estes precursores das famosas Marretas. Acompanhados de reco-recos e de maracás, cantavam :
Aruenda tenda cadê ioiô
A nossa rainha já se coroou

Traduza quem puder o primeiro verso, na certeza de que esta cantiga não fica muito aquém da Galinha Carijó, tão aceita hoje e repetida, mesmo nos nossos salões elegantes. Havia uma outra espécie de Maracatus, imitando índios, se apresentavam com tangas e cocares de penas. Marchavam num passo de dança selvagem, saltando para todos os lados, abaixando-se e levantando-se bruscamente. Lembravam os Convulsionários de 1727, que achavam grande prazer nesses movimentos violentos. (...) Pelo carnaval de 1918 muitos sócios do Clube dos Diários e suas famílias se reuniram próximo à estação dos bondes e, fantasiados, queimando fogos de bengala e gritando muito, vieram sobre os duros e incômodos carretões da Light até a sua sede, na rua Formosa... Daquela data até 1935 o nosso carnaval de rua quase se limitou a um corso pela Praça do Ferreira e ruas adjacentes: muitas serpentinas e confetes, crianças fantasiadas, muito alarido e raros papangus...