CABEÇA DE NEGRO

RAIMUNDO ALVES FEITOSA

RAIMUNDO BOCA ABERTA, RAIMUNDO BOCA MOLE, MUNDICO

Entrevista ao jornalista Lira Neto, publicada no Jornal O Povo, Fortaleza, em 13 de maio de 1995.

Nascido em 16 de julho de 1902, Raimundo Alves Feitosa fundou o mais antigo dos atuais maracatus de Fortaleza. Ele trouxe a idéia de Pernambuco, em 1936, ano de fundação do Az de Ouro, do qual durante 50 anos foi o macumbeiro principal: tirava versos, fazia músicas, idealizava as fantasias, saía de baiana e foi coroado como Rainha. Católico, devoto de Nossa Senhora do Carmo, Boca Aberta sempre foi, acima de tudo, um folião. Virava noites seguidas para cair no batuque. Na casinha da Vila União, quase nada lembra o passado de Raimundo Boca Aberta. Nenhuma fantasia antiga, nenhum troféu, nenhum recorte de jornal. Os amigos falam da existência de um baú secreto, onde ele esconderia, a sete chaves, a história de sua vida. Boca Aberta nega tudo. E nem mesmo se anima mais a assistir os desfiles de maracatu. Fica em casa, em sua cadeira de vime, tentando lembrar como era mesmo que terminava aquela loa de sua autoria, uma das primeiras músicas do maracatu cearense, que começava assim :

Cadê a chave do baú?/ Mariana tem / Você sabe, você viu?/ Eu não, meu bem
A entrevista foi acompanhada pelo cantor, compositor e pesquisador cearense Calé Alencar e pelo fotógrafo Fernando Sá.

O Povo – Como surgiu a idéia de trazer o maracatu para o Ceará?
Raimundo Boca Aberta – Foi depois que eu fui-me embora pra Pernambuco... (longo silêncio). Eu trabalhava aqui numa fábrica de redes, ali na Major Facundo. Você sabe que eu sempre trabalhei em fábrica?

OP – O senhor foi a Pernambuco para trabalhar?
RBA – Fui. Espere aí, escuta aqui: (cantando) "Penerê, penerô/ Ai penera o milho/ Negro Salvador/ Ai penera o milho/ Negro Salvador/ Ninguém pisa o milho como Mãe Antônia/ Pisa a noite inteira e não dá uma pamonha".

OP – Foi lá em Pernambuco que o senhor viu o maracatu pela primeira vez? Conte essa história...
RBA – Meu patrão foi embora pra Pernambuco com a família toda. Ele pelejou para me levar junto e no começo eu não queria. Ele dizia: "Seu Mundico, vamos comigo embora pra Pernambuco".

OP – Mas por que o senhor resolveu ir depois?
RBA – Com uma semana depois meu patrão voltou pra me buscar. Ele me encontrou numa padaria, olhou pra mim e disse: "Chegou a hora, você vai comigo". Nem mala eu tinha. Enfiei a roupa toda num saco de trigo que eu arranjei ali mesmo na padaria, passei em casa, peguei tudo e disse pra minha mãe que ia embora. E fui.

OP – Em que ano foi isso?
RBA – Era 1932... Nem me lembro direito. Fomos de navio, um navio grande. Cheguei em Recife e vi aquela animação, o pessoal dançando no meio da rua. Lá se dança o frevo.

OP – O senhor passou quanto tempo em Pernambuco?
RBA – Três anos. Acompanhei três carnavais seguidos. Tinha blocos, clubes, frevos e macumba. Esse último aí, a macumba, é o maracatu. Eu acompanhava os blocos de sete horas da manhã até o final da tarde. Depois eu ia pra casa, jantava e esperava o maracatu passar. Aí caía na dança até as quatro horas da madrugada. Ia pra casa, tomava banho e voltava pra festa.

OP – E como foi a criação do Az de Ouro?
RBA – Eu criei o Az de Ouro em 1936, logo que voltei. Um dia, era perto do carnaval, saí do trabalho e vi as orquestras tocando. Estava com dois amigos que tinham ido comigo tomar umas cachaças. Eu disse pra eles: ‘negrada, eu queria fazer um bloco aqui em Fortaleza, mas tinha que ser um bloco bonito, uma coisa que eu vi lá em Pernambuco e gostei muito’. Eles aí perguntavam que tipo de bloco era. Eu respondi: Ma – ra – ca – tu!

OP – Quem participava do bloco nesse primeiro momento?
RBA – Era principalmente eu e o Raimundo Negro. Fizemos o Az de Ouro durante 13 anos. No primeiro ano eram 42 pessoas. No segundo, saímos com 80. Meus seis irmãos participavam junto comigo. Mas já morreram todos, só sobrou o Clóvis. Os nomes deles era assim: Clóvis, Antônio, José... Mas como é que pode eu não lembrar mais do resto? E como eu posso me esquecer também daquela música bonita... Fui eu que inventei...

OP – Não lembra mais nem um trechinho?
RBA – Peraí... (cantarolando) ‘Quando ele vem lá da Costa do Ouro/ E a Cambimba velha vem se balançando/ No trono de reis coroado/ Vem se balançando é no balacombê/ Sou Az de Ouro/ Sou Az de Ouro/ Maracatu Az de Ouro enfezou/ Ele morreu mas ressuscitou/ Sonho de prata/ Sonho de prata/ Para o meu Az de Ouro/ A Rainha é a mulata/ A quem dei meu coração’.

OP – Que história é essa de morreu e depois ressuscitou?
RBA – Nós passamos três anos sem sair. Faltou dinheiro pra fazer as fantasias. Durante esse tempo eu fui brincar lá no Maracatu do Outeiro, o Dois de Ouro, que tinham inventado logo depois do Az de Ouro. Depois do Az de Ouro veio o Dois de Ouro, o Leão Coroado, muitos outros...

OP – E por que não tinha mulher no maracatu?
RBA – Era pra ser daquele jeito mesmo. As mulheres brincavam nos blocos delas, nos blocos das moças. Aí a gente se vestia de baiana. Mas agora já tem muita mulher no maracatu.

OP – Com que roupa o senhor desfilava?
RBA – Desfilava vestido de negra baiana, de saia grande e tudo mais. Eram quatro saias, uma embaixo da outra. E eu também já fui Rainha do Az de Ouro.

OP – Quem lhe botou o apelido de Boca Aberta?
RBA – Foi meu pai. Ele me chamava para fazer as coisas e eu ficava lá, parado, só de boca aberta, aí ficou Raimundo Boca Aberta.

OP – Em Pernambuco, os maracatus não têm a mesma característica de pintar o rosto. Isso foi idéia sua ?
RBA – Foi. A tinta preta é de pó de gás de lamparina misturado com vaselina. A gente fazia uma lata cheia e pintava o rosto. Era para ficar parecido com as negras escravas, com as baianas, vindas da África.

OP – Em que o senhor se baseava para fazer as músicas do maracatu ?
RBA – Umas músicas eu inventava, outras eu ouvia e levava pro maracatu. Um dia eu passei na rua e vi uns meninos brincando de roda. Era assim: "Cadê meu lenço que o boi babou?/ Tá no sereno, no coarador". Achei aquilo bonito e levei pra gente dançar.

OP – Muita gente considera o maracatu uma coisa muito triste para sair em pleno carnaval. O que o senhor acha disso ?
RBA – Maracatu não é triste, não. As minhas músicas não eram tristes. Eu fazia para o pessoal dançar. Tristeza pra mim foi só quando eu deixei de sair no Az de Ouro. Isso é que é tristeza.
Raimundo Alves Feitosa, o Boca Aberta faleceu em 25 de julho de 1996, aos 94 anos.